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Somos parentes de tudo que vive e pulsa...

Hekorya ryapuko póvae: Somos parentes de tudo que vive e pulsa

“Somos parentes de tudo que vive e pulsa… Somos parentes de tudo que flui. De tudo que se desdobra, somos parentes. Hekorya ryapuko póvae”

Por Daniel Iberê Guarani M’byá

Somos parentes de tudo que flui. De tudo que se desdobra, somos parentes. O gavião é parente da serpente que se enrodilha, como se de si se desembainhasse. O sopro de vento névoa, pelos ares formando, são as palavras formosas de nossos avós. Somos parentes dos que na água vivem juntos de Jasuká Sy ete, mãe primeira, tataravó da avó que vemos. Somos parentes dos mortos e das montanhas, parentes de Ñamandu, cujo coração é o sol, tataravô
deste sol que vemos.

Sobre as folhas caídas o Jaguar ete (a onça pintada) ensina silêncios nos passos que dá. Somos parentes da noite e da neblina, lírios de vento-névoa, saber que se desdobra, saber que desdobra as coisas. Aprendemos a paciência das pedras com a profundidade das raízes. Parentes da serpente última-primeira.

A flecha é parente do arco, assim como a caça é parente do caçador, a canoa é parente do rio e o rio é parente dos peixes e dos seres que nele vivem, dos seres que com ele habitam, dos mundos que nele há. Um parente cuida do outro, um parente se preocupa com o outro.

O Jaguar caça os seres e os humanos, mas ele não é nosso inimigo. A serpente caça o sapo, dele se alimenta. O sapo agora nela vive, a serpente agora é cobra e sapo. Sabe a cura quem vai ao mundo da doença. A doença é um caçador que pegou uma caça, ele tem fome. Quem quiser demovê-lo de seu alimento terá que mostrar seu coração transparente, terá que ir a seu encontro, em seu mundo, falar seu idioma, pedir licença, cobrir-se com a pele do puro animal que nele habita, a pele que ganhou de presente do caçador.

Terá que conversar com palavras indestrutíveis, mostrar que suas palavras são leves e não se bifurcam… Tornar-se Karaí, “pajé”, Nhe’ẽ Jara (senhor das palavras). Só então poderá trazer de volta o doente, só então poderá voltar ao mundo das coisas visíveis e o trazer com consigo.
Para reestabelecer o nhe’ẽ ao corpo que definha, é preciso conversar… explicar os motivos ao caçador – que está com fome e tem uma presa por entre seus dentes.

Jakairá Ru Ete, deu aos seu filhos o petenguá para cruzar a terra enferma, com seus passos resplandecentes… Aquele que tiver o coração transparente percorrerá este mundo que definha.
O tempo que agora vemos cabe no vazio do espaço, o espaço que agora vemos cabe no vazio do tempo, antes é depois e o que virá sempre foi. Infinitos desdobrados cabem nos que agora são humanos, nhe’ẽ agora de pé fazendo vibrar os humanos, nhe’ẽ em ywy mba’e megua, na terra enferma, mba’e megua querendo retorno ao tetã de nosso pai último, nosso pai o primeiro, irradiado seu saber das coisas, saber que desdobra as coisas saber que se enraíza…

Palavra-alma, palavra primeira, som palavra que se põe de pé que se ergue, vaga e se distende na neblina originária neblina que segue na fumaça do petenguá dos ñanderamói, nossos avós, nossos maiores, nossos primeiros, aqueles que vieram antes para mostrar o depois, fumaça caminho dos nhe’ẽ por onde voam, vento fumaça, nhe’ẽ se desdobrando, tornando as outra coisas que só existiam no antes, quando o tempo era pequeno e ainda não sabia de si. Karai se desdobrando, Karai humano, se despindo, transparecendo, sublimando, aguyjé porã, Karai se
elevando, aspirando ser divino, na divindade que nele há, Karai sabia ao certo os caminhos que ainda não, Karai os abriu, Karai Xapá foi à terra sem males ywy marae’y, Karai Xapá, tornou ao ambã de nosso pai último primeiro, Karai foi só. Só depois os outros Karai foram…

Karai Xapá, chegou ao mar para ir ao ywy marae’y, a terra sem males, terra das coisas não mortais, Karai encontrou M’bói, a serpente originária, a cobra que o levou, levou seu nhe’ẽ com seu corpo humano, a cobra o levou completo, cobra originária tataravó das cobras que vemos, as cobras que vemos são reflexos de M’bói última primeira, ela habita a morada de Ñanderu, ambá de nosso pai.

Karai foi se despindo até ficar transparente, e foi então que pode passar pelo mundo das coisas imperfeitas. Desde então o caminho do Karai é não ser, ser despido, ser nada, para que tudo possa soar e ser por si mesmo, ser irradiado. O nhe’ẽ fez morada, o humano que agora vemos, agora é humano, mas nhe’ẽ é do mundo das coisas não mortais, uma palavra tomou assento no ser que é. O peixe habita o peixe, mas o peixe que vemos é só um reflexo do peixe que
nele habita, o peixe que no peixe habita é a palavra-indestrutível, palavra primeira,
som que faz tremer, nhe’ẽ.

O jaguar habita o jaguar, o jaguar que no jaguar habita vem da morada do jaguar eterno, amba de jaguar ovy, mas o jaguar que vemos é somente o reflexo do jaguar primeiro. O jaguar que habita o jaguar que vemos é nhe’ẽ.

O humano habita o humano, mas o humano que vemos é um rascunho do humano que nele há. A palavra que tomou assento e se ergueu é nhe’ẽ. Karai habita o humano, Karai habita o jaguar, Karai habita a serpente, Karai habita a pedra, mas Karai é nhe’ẽ, o sopro de Ñanderu, Karai é tapejara, senhor dos caminhos, Karai é nhe’ẽ jara, senhor das palavras, os caminhos que levam aoamba dos jaguar ovy, jaguares originários, Karai é sabedor dos caminhos dos seres das águas, sabe ir e sabe voltar, quanto mais caminha, mais mundos conhece, seu poder vem do caminhar e caminhando os mundos se desdobram nos saberes que desdobram as coisas.

Karai transparente, Karai nhe’ẽ ouve os ayvu últimos primeiros, Ñamandu fala ao Karai sempre que o Maraká se põe a mover. O mundo se põe em movimento, mundos se desdobrando com as palavras alma, palavras indestrutíveis, belas palavras, palavras verdadeiras, que não se bifurcam.
O som do Maraká anuncia a primeira palavra e instaura o ritmo primordial em todos os seres. Em seu âmbito e a seu comando, infinitos universos põem-se em movimento. Sua forma reúne mundos e abriga um sem fim de vidas nas quais diferentes, iguais, múltiplos e complexos seres, de divina “natureza” e “alma”, habitam, em desafio de coabitar, de coexistir, de conviver, de bem viver. O som por ele produzido é a voz dos últimos-primeiros as palavras-alma, palavras indestrutíveis, os nhe’ẽ. O Karai ouve no som do maraká as palavras-alma.

O Karai se faz jaguar sem deixar de ser humano, se faz serpente sem deixar de ser humano, voa alto e vê no escuro sem deixar de ser humano. Veste peles mas é nhe’ẽ. Palavra que se pôs de pé. Palavra que em um corpo, procura assento. O silêncio pode ser ruidoso Como um corpo escuro, iluminado por alguma fonte, absorve todas as cores e reflete a luz de sua própria cor, também o silêncio pode absorver nossos sons.

Então, em nosso caminhar sobre a terra das coisas que definham, praticamos esse silêncio profundo. Dentro de nossas mentes, de nossas percepções, de nossos pensamentos e também da calma do nosso corpo. Então há solidez, estabilidade, pulsar, pulsar e fluir… assim, outros sons podem surgir, ser e soar por si, desdobrando mundos, mundos outros, mundos vários.

Quando em cada passo que se dá, em unidade com a mãe natureza, e não há divisão entre “um” e “outro”, a natureza e aquilo que existe, então, há um som profundo. Não há limites, pode surgir uma música daí, um poema, um sorriso. Um sorriso pode ser um som lindo.
E é por isso que em longas caminhadas, cantamos assim:

Hekorya ryapuko póvae
Hekorya ryapuko póvae…

(O som que escutamos é do modo de ser dos Seres divinos
Eles vêm e trazem seu próprio ser na forma do que há…)

 

Excerto de Texto da Tese de Doutoramento de Daniel Iberê Guarani M’byá é indígena, filósofo, esposo e pai. Professor na empresa Universidade Federal do Acre – Ufac e UNIMETA Centro Universitário, É Doutor em Antropologia Social pela UnB – Universidade de Brasília. É um colaborador da ALABEG/RIDE – Academia de Letras e Artes do Nordeste Goiano/Rede Integrada de Desenvolvimento do Entorno-DF e da xapuri.info.

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