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O Sagrado Indígena e a Dialética do Pecado – Parte I

O Sagrado Indígena e a Dialética do Pecado – Parte I – Começando a viagem’…

 Por Jairo Lima

Vanitas vanitatum et omnia Vanitas”*

Acordei hoje pensando nessa frase que, em sua essência, nos esbofeteia a cada momento, quando paramos para refletir sobre o seu significado. Não percebi de início o porque dessa citação em especial, oriunda das catacumbas sagradas do Velho Testamento, ter alguma importância neste meu amanhecer asmático de julho, quando a falta de umidade me lembra da insignificância existencial humana diante do clima amazônico.

No decorrer do dia, entretanto, enquanto me dedicava ao prazeroso trabalho de finalização do livro da Dedê Maia, meus pensamentos divagavam sobre algumas impressões que andei tendo no decorrer da semana. Impressões estas suscitadas por um excelente texto** indicado pelo amigo José Pimenta, antropólogo e professor na UNB.

Resolvi, então, iniciar hoje uma ‘viagem’ um pouco mais longa, estendendo esta crônica. Não no sentido de criar teoria ou explicações para o que quero refletir, mas, sim, no sentido de expandir e mergulhar mais fundo no entendimento desta contínua busca pela compreensão e entendimento do sagrado.

Assim, convido aos que quiserem embarcar comigo para que me acompanhem nessa jornada e, para os que não tiverem interesse… nos vemos na volta.

Então… vamos lá…

Penso que nós, ocidentais, colonizadores e herdeiros da religião judaico-cristã, temos um problema que nos vem de geração em geração, uma herança que, segundo Voltaire citou em seu “Dicionário Filosófico”, nos traz a consciência de que nascemos mal, somos filhos do diabo e que, por fim, estamos condenados a ter como refrigério a danação eterna no inferno, pois já nascemos marcados pelo tal “Pecado Original.”

Se esse infortúnio já não fosse suficiente, no decorrer de toda nossa imprestável existência humana, passamos a vida inteira lutando contra outras série de tentações e indisposições espirituais, causadas por uma miríade de pequenos e grandes delitos, conhecidos como pecados. E estes são de toda ordem e todos os tipos possíveis, que regulam e prendem em lastros firmes o ser humano. Mas não o prende em grilhões materiais, e sim no âmago de sua existência, ou seja, o espírito.

A questão do “Pecado Original”, destrinchada e dissecada por Santo Agostinho é resultado de uma terrível traição para com Deus. Ação nefasta essa que herdamos do inseguro e ingênuo Adão.

Assim, como esse papai aventurou-se no descaminho do pecado, nós, seus herdeiros genéticos e espirituais também já nascemos com a marca indelével de nossa danação premeditada e anunciada em todos os tipos de cores e matizes.

Em sua leitura da natureza espiritual do homem, Santo Agostinho, o excelso ‘Pai da Igreja’, chegou à conclusão que a natureza humana encontra-se doente, necessitando de um médico que possa restabelecer a saúde humana.

Ou seja, a cura seria, então, resultado da ação direta de um ser ‘externo’. Desta maneira, o ‘remédio’ para esta funesta enfermidade não está no próprio homem, cabendo a este, então, buscá-la com vigor e afinco por toda sua vida material.

O Mediador, Jesus Cristo, faria este papel savílico mediante a sua misericórdia.

O interessante é que os muçulmanos, que também acreditam na criação divina do homem, e também tem Adão como “Pai” e primeiro Profeta, não herdaram esse legítimo presente grego, pois não creem no Pecado Original, isso não parece sensato para esta religião.

Se você se dedicar a buscar entender mais sobre esse assunto não tardará a perceber que, um dos maiores problemas da crença judaico-cristã – da maneira que é praticada por nós ocidentais – está no fato de que, em vez de se apegar aos preceitos filosóficos e contemplativos dessa religião, se agarra somente na ávida e neurótica busca de evitar os alvitres e ciladas do ‘sujo atentador e mensageiros do mesmo’, ou seja, o “cramunhão” e sua legião de asseclas.

Explico: Resumidamente, como bem observado em uma das leituras que fiz, o Homem, em vez de aproveitar sua existência e sua religião para alcançar o Paraíso (ou a Iluminação), passa toda a sua medíocre vida lutando para não ir para o Inferno. Claro que estes objetivos são diferentes, o que também faz com que os procedimentos a serem seguidos para alcançá-los também sejam diferentes, em muitos casos.

O pecado assume, então, um protagonismo essencial na garantia de que, evitando-o, escapar-se-á das chamas e demais tribulações dos círculos infernais. Assim, todos os rituais criados a partir desta premissa passam, inexoravelmente, a explorar a miserabilidade humana diante dos poderes divinos e das forças místicas do Sagrado.

Como resultado temos as missas, cultos e demais sacramentos,  sempre passando pela premissa do pecado, da luta contra um mal que sempre está por perto, azucrinando-nos, etc. Ou seja, é sempre uma agonia, onde a contemplação do belo e da luz são coisas negadas a todos os “degredados filhos de Eva”, que não dediquem sua existência terrena na luta incansável do Bem contra o Mal, e os pecados são o tempero principal nessa peleja.

Já parou para pensar quantos pecados existem? Pois bem. Se levarmos em conta só o Velho Testamento (Torá judeu) são 613, pois este é  total de mandamentos do Senhor, sendo assim, transgredi-los seria um pecado.

A este número somemos, claro, os Sete Pecados Capitais; Os 63 pecados de análise de “consciência” antes da confissão; Temos os pecados da carne; Os pecados da juventude, etc.

Em resumo: existir já é por natureza um pecado, e pensar enquanto se existe já é outro problema e, claro, se você inventar de “viver” (socialmente, culturalmente, amorosamente, etc) aí lasca tudo.

E para piorar vale lembrar que deixar de viver por conta própria, ou seja, tirar a vida também é pecado. E é com esta carga toda que vivemos. Ou seja, já começamos o “jogo” no game over.

Sabe qual o resultado disso? A ‘dor’ da existência, purgada em rituais chatos e extremamente agonizantes, cheios  de fórmulas ritualísticas difíceis de entender e que eleva ao máximo o que entendemos como ‘fé’.

As homilias, pregações e ladainhas sempre nos lembram de nossa condição de condenados à danação, mas, claro, também mostram o caminho a seguir para fugir dessa danação.

Interessante essa questão de “purgatório”, com seus dogmas criados no século XIII, mas com suas origens ainda no judaísmo, com o costume de orar pelos mortos, logicamente que com a especificação dos dogmas, criou-se todo um detalhamento das eucaristias necessário para poder purgar-se. Vejam bem: mesmo vivendo em estado de graça toda a existência, ainda assim teremos que passar uma temporada nestas paragens. Onde o tempo dessa estadia nada relaxante varia de acordo com os anos em que vivemos neste estado de graça.

Logicamente que, assim como o mal é um ente externo, nessa condição de pecadores, com a doença do espírito o Homem também necessitará de um agente externo que nos conduza para a iluminação e o estado de graça – como citado anteriormente no texto.

Isso manda pras cucuias a Eudaimonia de Aristóteles, onde a vida valeria por ela mesma e nada mais importaria. Vale citar que, segundo este grande pensador da antiguidade, a moralidade não tem nada a ver com regras (ou pecados?), pois o Homem virtuoso sabe agir bem, sem necessidade de se decorar regras de conduta, estabelecidas por muitos ou poucos.

E onde está a questão indígena nesse blá blá blá todo? – Creio que estejam se perguntando. Calma, chegaremos lá. Pensem que estamos num pequeno barco subindo um rio. Temos tempo, o assunto é complicado e não se encerrará agora.

Voltando… Penso que essa visão reducionista e compartimentada do sagrado está tão entranhada em nossa sociedade ocidental que nem notamos que estamos cercados pela mesma. Não percebemos como reproduzimos inconscientemente tudo isso. Não paramos para pensar que boa parte, e não a maioria, das informações que nos chegam, dos mais variados tipos sobre essa sociedade estão totalmente impregnadas disso tudo.

E sabem onde tudo pode aflorar? Respondo: quando passamos a questionar essas ‘verdades’ e partimos em busca de algo além desta fronteira.

É nessa busca que nos deparamos com diferentes leituras do sagrado, como o hinduísmo, budismo, ritos africanos, indígenas, etc. Não usarei a alcunha de ‘religião’ para estes caminhos ou crenças pois, isso as reduziria a meras sombras de sua essência principal.

Mas, quando se pensa que bastando aderir a uma destas linhas estamos nos livrando de certos preceitos, reducionismos e conceitos, descobrimos, no decorrer da jornada que nos deixamos enganar por nós mesmos, pois, no intuito de ‘dar significância’ ao que estamos buscando e ao que estamos experimentando muitas vezes, confundimos todo o seu simbolismo e essência, compartimentando-o numa caixinha previamente programada em nosso ser que, sem sabermos, aciona-se tão logo ao sairmos dos trilhos pré-estabelecidos.

Como já citei em texto anterior, como me foi mostrado num dos meus momentos de contato com o sagrado indígena, no ‘fim’, todos nós chegaremos ao mesmo objetivo, ao mesmo lugar. O que muda somente é o caminho que escolhemos para chegar nesse objetivo, pois, conforme o caminho que viemos a escolher, teremos diferentes aprendizagens  e vivências e, quanto menos ‘pularmos’ de um caminho para o outro, menos chance teremos de nos perder, andando em círculos que impedem a evolução do espírito. No fim, o que importa é o que levaremos conosco quando chegarmos ‘lá’.

Conhecer, ou ao menos estar aberto para compreender as diferentes simbologias, e aprender com os dilemas existenciais de quem ‘saiu da caverna’ e viu a luz pela primeira vez, é algo  essencial nesse caminhar. Do contrário, corremos o risco de transformarmos essa busca espiritual em uma experiência superficial de experimentação do sagrado gourmet, que vem ganhando bastante espaço nos últimos anos.

– Tá certo, mas e o sagrado indígena… – Sim! O sagrado indígena é parte deste processo, pois é principalmente através de algumas de suas manifestações, como a dos povos que utilizam plantas de poder, como a ayahuasca, que esta questões todas acima citadas e outras mais – como as estereotipias e fantasias – afloram vivamente para os yurá (não-índios) que neste caminho se aventuram. E que, em muitos casos, vem transformando-se num poço de vaidades e pasteurizações diversas. Eu, particularmente creio que pior que a vaidade em demasia, é a falsa modéstia.

Vamos abordar isso, mas, agora, precisamos encostar o barco no barranco para abastecermos… O papo continua no próximo texto.

ANOTE AÍ:

Notas do Autor:

* (Vaidade das vaidades, tudo é vaidade) Eclesiastes;

** Este texto será publicado ainda esta semana no blog, aguardem.

*** Todas as imagens são de autoria do artista plástico acreano, Danilo de S”Acre, e form retiradas do livro “LAPSUS: Retrospectiva Parcial de Danilo S’Acre”.

Sobre o Autor:

Jairo Lima, escritor e indigenista acreano, radicado no Vale do Juruá, publica seus escritos semanalmente no blog: www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br. Por gentileza de Jairo, também semanalmente, seus textos são reproduzidos aqui neste nosso site da revista Xapuri.

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Adelino

ótima texto amigo, obrigado por compartilhar estas reflexões, isso é muito importante

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