A Funai afirma na nota que conscientizou e esclareceu aos indígenas do Xinane “sobre os riscos da cidade, sobretudo, os epidemiológicos, mas os índios tinham muito curiosidade e viajaram por conta própria.”“O povo indígena do Xinane, por sua condição de contato recente, possui reduzido conhecimento dos códigos e valores, ou incorporação dos usos e costumes da sociedade envolvente, embora mantenha significativa autonomia sociocultural e econômica”, explicou a fundação na mesma nota.
O órgão explicou na nota de agosto de 2017 que a viagem do grupo era guiada por servidores. “O fato de eles terem tomado a iniciativa própria de conhecer a cidade, já revela um passo adiante na qualificação de diálogos com eles. Essa visita guiada pela equipe poderá, também, contribuir rumo à garantia de um maior grau de autonomia do povo indígena do Xinane.”
Ainda sobre a viagem à Feijó, a Funai afirmou que os jovens do Xinane ficaram hospedados na casa de “um colaborador da Funai, de confiança” e destacou que os índios Purus, Shirimaku, Hamistar, Hainuno e Kada voltariam ao local de origem, a Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira, na fronteira do Acre com o Peru.
O território dos índios Kampa (também denominados de Ashaninka) é demarcado e tem 232 mil hectares abrangendo os municípios de Feijó e Boca do Acre, este no estado do Amazonas. A fundação também classificou o interesse dos indígenas em conhecer outras aldeias no entorno da cidade como “um intercâmbio com outros indígenas para suavizar o impacto desta experiência inédita para eles”
Do contato ao cabelo da moda
Em junho deste ano completará quatro anos que os indígenas do povo do igarapé Xinane fizeram o primeiro contato com a sociedade nacional. O caso aconteceu na Aldeia Simpatia, do povo Ashaninka, na Terra Indígena Kampa e Isolados, no Alto Envira, no Acre. As imagens deles falando uma língua desconhecida e segurando arco, flechas, facões e espingarda rodaram o mundo. Para formalizar o contato, a Funai chamou os indígenas Jaminawa para fazer a tradução pois eles são falantes do tronco linguístico Pano como os índios do Xinane. Nas conversas, os isolados relataram que sofriam ameaças de madeireiros e invasão do território na fronteira com o Peru.
A realidade atual do Shirimako e Hainuno é bem diferente da qual viviam na floresta e tem um misto de perigo, curiosidade e saudade. Dona Mariquinha Jaminawa contou à reportagem que os deslocamentos do grupo aumentaram depois que a Funai demitiu os cinco tradutores Jaminawa dos trabalhos na FPE do Envira. “O grupo que vivia na base, umas 35 pessoas (do Xinane), se espalhou. Foi assim: eles (a Funai) retiraram nós (Jaminawa) da base. Aí começaram a baixar (a viajar) para nos procurar. Foi um bocado. Dois estão aqui”, disse ela sobre Shirimaku e Hainuno.
Agora, os dois jovens, que na floresta amazônica viviam nus e com adereços nos braços e pênis, usam calças jeans e camisetas como os jovens Jaminawa do bairro Cidade do Povo. Shirimaku, mais extrovertido e com uma desenvoltura ao falar, tingiu os cabelos de louro. Hainuno, mais tímido e de pouca conversa, não tira os óculos escuros. Os dois têm cortes de cabelo da moda ocidental e ao estilo dos jogadores de futebol: laterais raspadas e franja alta.
Shirimaku concedeu a entrevista à reportagem acompanhado do tradutor Edson Jaminawa, de 36 anos, e sua avó Mariquinha. O tradutor trabalhou na equipe da Base de Proteção Etnoambiental (FPE) do rio Envira, a mesma que foi demitida. Hainuno, que é chamado pelos demais de Curumim, preferiu não falar, ficando apenas observando a conversa.
A reportagem perguntou qual foi o motivo dos deslocamentos do Alto Evira para Sena Madureira e Rio Branco. Shirimaku respondeu, conforme disse o tradutor, que queria conhecer a aldeia Caiapucá, próxima a Sena Madureira, para encontrar os Jaminawa, também chamados de Yaminawá. Ele contou que pediu ao funcionário da Funai, William Lafuri, coordenador da FPE Envira, uma ajuda para viajar.
“Wiliam, por que você não me leva lá? Quero conhecer a casa deles? Aí, esse Wiliam disse que não pode levar não, ‘porque você não tem documento’. Aí eu disse que se não me levar eu vou”, afirmou Shirimaku.
Shirimaku disse à reportagem que gosta da cultura brasileira e já pronuncia algumas palavras em português como cumprimentos de cordialidade, “bom dia” e “boa noite”.
Com relação a alimentação que consome agora, ele diz que é “muito diferente, muito diferente” da floresta, mas tem preferência por massas. “Gostei de macarrão”, diz.
“Não é igual na mata, onde tem banana, macaxeira, batata doce. Tem muita caça para nós comer. Aqui, tem almoço, janta e não é igual na mata. Só com dinheiro”, complementou ele sobre a dificuldade de garantir a alimentação na cidade de Rio Branco.
O indígena de recente contato disse que apesar das dificuldades na cidade quer morar em Rio Branco. “Aqui é bom, não quero mais viver lá (na floresta).”
Desde o primeiro deslocamento da Base da FPE do Envira até os dias atuais, Shirimaku não conseguiu obter documentos como o registro civil. Por ter contraído uma gripe e ser atendido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), o primeiro documento que recebeu foi um cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). “A primeira vez que passei por isso, vomitei, tive medo de morrer (de doença)”, lembrou ele sobre os sintomas da gripe.
O tradutor Edson Jaminawa interrompeu a entrevista para explicar que, na floresta, Shirimaku e Hainuno não correm o risco de contrair doenças.
“Na floresta não tem doença como na cidade. Eles, aqui, sofrem até com o calor. Na floresta eles andam debaixo das árvores e quando está quente eles se refrescam”, disse.
Edson disse que orienta os jovens do Xinane a estudar, aprender a ler e a escrever na língua portuguesa para compreender a sociedade nacional. Também chama atenção deles para não incorporarem usos e costumes dos jovens da periferia. “Shirimaku queria fazer uma tatuagem, não deixamos. Ele pode se arrepender depois. Isso não é certo”.
Indígenas isolados no Acre, Wnane Sapanawa (Foto: Odair Leal/Amazônia Real)
Sociedade de altos e baixos
A agência Amazônia Real procurou o líder indígena Jaminawa, José Correia da Silva, que participou do contato com o povo Xinane em junho de 2014, na fronteira do Acre com o Peru. Atualmente, Zé Correia Tonumã, como é mais conhecido, é coordenador técnico local da Funai no município de Sena Madureira (AC). Na entrevista, ele expressou preocupação dizendo que o grupo de jovens “está espalhado”, sem um tempo permanente nos locais em que escolhem para morar.
“Quando eles chegaram aqui (em Sena Madureira), eles vieram de Feijó. Ali foi uma situação difícil, outros parentes começaram a tratá-los de forma diferente. Uma pessoa de lá ligou pra nós, dizendo que eles (índios do Xinane) estavam sendo maltratados. Conseguiram comprar passagens (de barco) e trouxeram os dois (Shirimako e Hainuno). Depois ficaram um tempo em Rio Branco, depois vieram para cá. Eles ficam lá, ficam na aldeia, depois saem de novo. É a rotina que eles estão fazendo”, disse.
Para Zé Correia, a Funai precisa criar uma maneira de atender aos indígenas de recente contato sem necessariamente obrigá-los a ficar na Base FPE Envira. “Eu creio que a Funai tem até vontade (de ajudar). O problema é o jeito de trabalhar. Antigamente, tinham homens que amavam a camisa da Funai, trabalhavam na Frente de Proteção ou em qualquer área do indigenismo. Hoje, a maioria, corre para outro lado, não conhece a realidade de um povo que está chegando na sociedade envolvente. Porque essa sociedade ocidental é muito cheia de altos e baixos”, disse.
Segundo o coordenador da CTL Sena Madureira, “a Frente de Proteção é para proteger a questão indígena”. “É preciso ter um projeto de boa alimentação, um projeto bem adequado a vida deles. Porque eles não vão ficar o resto da vida com tudo que estão enfrentando na cabeça. ‘O índio tem que continuar indiozinho’. Os meus pais passaram por tudo isso”, disse Zé Correia sobre o enfrentando dos povos em deixar a comunidade isolada e morar na cidade.
O coordenador avalia que a retirada dos cinco tradutores Jaminawa da Base da Frente de Proteção Etnoambiental Envira comprometeu a permanência dos índios de recente contato na terra indígena.
“A organização do povo Jaminawa queria trabalhar com eles (índios do Xinane) para a Frente de Proteção. E dissemos assim: ‘a gente precisa trabalhar, é um povo que está recém-chegado’. Nós oferecemos que o povo Jaminawa tinha pessoas para trabalhar com eles. Mas o pessoal (da Funai) disse: ‘eles não precisam de vocês, vocês botam dificuldade’. Cada ser humano tem que ter um programa e um projeto completamente diferente. Então não foi feito esses cuidados e o que está acontecendo é isto”, afirma José Correia.
Índios de recente contato, segundo a Funai, são “aqueles povos ou grupos indígenas que mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade nacional independentemente do tempo de contato, apresentam singularidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e serviços. São, portanto, grupos que mantêm fortalecidas suas formas de organização social e suas dinâmicas coletivas próprias, e que definem sua relação com o Estado e a sociedade nacional com alto grau de autonomia.” A Funai diz que realiza ações de proteção e promoção em 19 terras indígenas de grupos considerados de recente contato, como os Zo’é, Awá Guajá, Avá Canoeiro, Akun’tsu, Canôe, Piripkura, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá e Yanomami, entre outros.
Indígenas isolados no Acre, Wnane Sapanawa (Foto: Odair Leal/Amazônia Real)
A agência Amazônia Real enviou por e-mail à assessoria de Comunicação Social da Presidência da Funai, em Brasília, dez perguntas, entre elas, indagando ao órgão quais providências tomou para garantir a integridade física e cultura os dos jovens Shirimaku e Hainuno em Rio Branco. Também perguntamos o paradeiro e a situação de saúde do jovem Hamistar, que teria sido ferido com um tiro acidental e em quais circunstâncias aconteceu o caso. Até o fechamento desta reportagem a fundação não respondeu as perguntas. Caso a Funai responda os questionamento este texto será atualizado. (Colaboraram na reportagem Elaíze Farias, Kátia Brasil e Maria Cecília Costa)
Veja a entrevista exclusiva com Shirimaku
Fonte e conteúdo integral desta matéria : amazoniareal
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