Thiago de Mello: Poeta do Esperançar
Por Rosilene Corrêa
Em Santiago do Chile, no verão de 1964, o poeta Thiago de Mello exaltou, em versos, o método revolucionário de Paulo Freire para alfabetizar pessoas adultas, a partir dos fonemas da vida de cada uma delas, que ele tão bem traduziu como “fonemas da alegria”. Nestes tempos bicudos de retrocesso para a Educação brasileira, celebro a memória de Thiago de Mello com os versos que o poeta escreveu para homenagear o esperançar de Paulo Freire.
CANÇÃO PARA OS FONEMAS DA ALEGRIA
A Paulo Freire
Thiago Mello
Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente, para desfraldar
este canto de amor publicamente.
Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.
Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano,
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,
e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas
são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis girando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.
Às vezes nem há casa: é só o chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:
porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,
e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão
que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena que paga por ser homem,
mas um modo de amar – e de ajudar
o mundo a ser melhor. Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:
ele atravessa os campos espalhando
a boa-nova, e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte,
contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.
Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:
canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.
Rosilene Corrêa – Diretora do Sinpro/DF. Conselheira da Revista Xapuri. Capa: Fabio Rossi/Reprodução/Internet.
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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